Vestígios
Às vezes Regina tinha a impressão de que sua vida também andava de bengalas. Como a pele enrugada e flácida, despencando pouco a pouco, todos os dias.
O quarto escuro. O lugar sobrando na cama de casal. O ar melancólico. Os retratos sérios e carrancudos da parede. Tudo soava como vestígios de um passado feliz, um tempo que ia amarelando feito as cartas de amor enviadas pelo marido.
Agora estava sentada sobre a cama, de camisola branca e com a cabeça apoiada em dois travesseiros fofos, aguardando a chegada dos primeiros raios de sol. Não que houvesse muito que fazer naquela terça-feira. Ou seria quarta?
Ela iria à missa de manhã, encontraria Dona Rosely e o Sr. Juvenal, acompanharia as orações do Padre Jorge e voltaria, a passos lentos e miúdos para casa. Então, prepararia uma sopa para o almoço, regaria as plantas e ligaria a TV. Depois, passaria o resto da tarde fazendo tricô e cochilando, à espera da novela da 20h00, para que novamente pudesse se deitar.
Mas ainda restavam-lhe os filhos e netos, para os quais adorava preparar fartos almoços aos domingos. E eram justamente estes os dias mais aguardados. Como se um sopro de vida viesse varrer toda sua casa. Como se aos domingos, ela renascesse para abraçar as sobras de felicidade que José Carlos, Marisa e as crianças despejavam pela sala.
- Vovó, quem é este orelhudo de chapéu aí no quadro?
- Este é o seu avô, querida.
- E onde é que ele está?
- Ele morreu faz tempo, meu amor, você ainda nem era nascida.
- E esta aqui neste retrato?
- Esta daí é sua bisavó, que você também não conheceu.
- Vovó, todo mundo que é branco e preto já morreu?
- Hehehe, mas é claro que não. Olha aquela menina sentada na cadeirinha com uma boneca na mão.
- Quem é ela?
- Aquela lá sou eu, quando tinha a sua idade.
- Você também já foi pequenininha vovó?
- Sim. E era curiosa e danada igual a você.
- E você gostava de brincar de boneca?
- Adorava. Mas isso também faz muito tempo, você ainda não era nascida.
- Que pena vovó, eu ia gostar de brincar de boneca com você.
