Até que a morte nos separe
Por mais que Letícia lavasse as mãos, o esforço era inútil. Lá estava ela, irredutível, estrangulando o dedo, impedindo o fluxo tranqüilo do sangue pelo corpo. Uma espécie de sufocamento consentido. Uma morte gradativa, da qual sentia-se ao mesmo tempo vítima e cúmplice.
Letícia evitava o espelho. Um pouco por vergonha de se olhar nos olhos, um pouco por medo de não reconhecer a própria imagem.
O corpo estava tonto, ainda à procura do falso eixo em torno do qual havia girado durante mais de 30 anos.
Por toda a casa, ouvia-se o silêncio murmurado e morno dos velórios. Nos lábios, um estremecimento de terror, uma tentativa de prece pelos dias de luto que viriam. Como a viúva que ainda não se acostumou à solidão de uma vida inteira.
As lágrimas escorriam pela louça pálida da pia. A aliança esforçava-se por manter o laço já desfeito, como se ela também duvidasse da decisão de sua dona.
Até que, finalmente, como um organismo que rejeita um corpo estranho, um frágil estalido de metal veio anunciar o começo de uma nova vida. Após rodopiar durante alguns segundos em ritual triste e solitário, a pequena jóia foi acomodar-se no fundo da pia.
No dedo ferido de Letícia, marcas do último arranhão deixado pelo casamento. No rosto, o início de um sorriso, recompensa pela primeira de muitas outras vitórias.