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  • Quarta-feira, 23 de fevereiro de 2005

    Até que a morte nos separe

    Por mais que Letícia lavasse as mãos, o esforço era inútil. Lá estava ela, irredutível, estrangulando o dedo, impedindo o fluxo tranqüilo do sangue pelo corpo. Uma espécie de sufocamento consentido. Uma morte gradativa, da qual sentia-se ao mesmo tempo vítima e cúmplice.

    Letícia evitava o espelho. Um pouco por vergonha de se olhar nos olhos, um pouco por medo de não reconhecer a própria imagem.

    O corpo estava tonto, ainda à procura do falso eixo em torno do qual havia girado durante mais de 30 anos.

    Por toda a casa, ouvia-se o silêncio murmurado e morno dos velórios. Nos lábios, um estremecimento de terror, uma tentativa de prece pelos dias de luto que viriam. Como a viúva que ainda não se acostumou à solidão de uma vida inteira.

    As lágrimas escorriam pela louça pálida da pia. A aliança esforçava-se por manter o laço já desfeito, como se ela também duvidasse da decisão de sua dona.

    Até que, finalmente, como um organismo que rejeita um corpo estranho, um frágil estalido de metal veio anunciar o começo de uma nova vida. Após rodopiar durante alguns segundos em ritual triste e solitário, a pequena jóia foi acomodar-se no fundo da pia.

    No dedo ferido de Letícia, marcas do último arranhão deixado pelo casamento. No rosto, o início de um sorriso, recompensa pela primeira de muitas outras vitórias.




    Quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

    Vestígios

    Às vezes Regina tinha a impressão de que sua vida também andava de bengalas. Como a pele enrugada e flácida, despencando pouco a pouco, todos os dias.

    O quarto escuro. O lugar sobrando na cama de casal. O ar melancólico. Os retratos sérios e carrancudos da parede. Tudo soava como vestígios de um passado feliz, um tempo que ia amarelando feito as cartas de amor enviadas pelo marido.

    Agora estava sentada sobre a cama, de camisola branca e com a cabeça apoiada em dois travesseiros fofos, aguardando a chegada dos primeiros raios de sol. Não que houvesse muito que fazer naquela terça-feira. Ou seria quarta?

    Ela iria à missa de manhã, encontraria Dona Rosely e o Sr. Juvenal, acompanharia as orações do Padre Jorge e voltaria, a passos lentos e miúdos para casa. Então, prepararia uma sopa para o almoço, regaria as plantas e ligaria a TV. Depois, passaria o resto da tarde fazendo tricô e cochilando, à espera da novela da 20h00, para que novamente pudesse se deitar.

    Mas ainda restavam-lhe os filhos e netos, para os quais adorava preparar fartos almoços aos domingos. E eram justamente estes os dias mais aguardados. Como se um sopro de vida viesse varrer toda sua casa. Como se aos domingos, ela renascesse para abraçar as sobras de felicidade que José Carlos, Marisa e as crianças despejavam pela sala.

    - Vovó, quem é este orelhudo de chapéu aí no quadro?

    - Este é o seu avô, querida.

    - E onde é que ele está?

    - Ele morreu faz tempo, meu amor, você ainda nem era nascida.

    - E esta aqui neste retrato?

    - Esta daí é sua bisavó, que você também não conheceu.

    - Vovó, todo mundo que é branco e preto já morreu?

    - Hehehe, mas é claro que não. Olha aquela menina sentada na cadeirinha com uma boneca na mão.

    - Quem é ela?

    - Aquela lá sou eu, quando tinha a sua idade.

    - Você também já foi pequenininha vovó?

    - Sim. E era curiosa e danada igual a você.

    - E você gostava de brincar de boneca?

    - Adorava. Mas isso também faz muito tempo, você ainda não era nascida.

    - Que pena vovó, eu ia gostar de brincar de boneca com você.




    Quarta-feira, 02 de fevereiro de 2005


    Lições de um náufrago



    O pátio era de um verde bem claro e tinha-se a impressão de estar deslizando em águas muito puras. Duas grandes fileiras de banco imitavam as margens daquele nosso enorme rio artificial.

    Como quem desce uma corredeira violenta e perigosa, dezenas de rostos assustados e infantis vinham desaguar pela grande escadaria, esperando que as comportas do colégio se abrissem para o primeiro dia de aula.

    De uniforme azul e branco, éramos marinheiros de primeira viagem, agarrados às nossas mochilas novas como se fossem coletes salva-vidas.

    O primeiro sinal soou longo e triste, lembrando o apito de um velho navio. Uma senhora de saia até o joelho e rugas de extrema rigidez na testa conduziu cada pequena fila de crianças pelo colégio, deixando cada uma delas seguir seu curso.

    Acomodados em nossas carteiras de madeira, aguardávamos a entrada do novo capitão. Uma onda crescente de burburinho invadia a classe, denunciando o mar de expectativa e ansiedade em que estávamos mergulhados. Apesar disso, mantínhamo-nos imóveis em nossos botes de madeira.

    Como se tentasse decifrar um complicado mapa, eu vasculhava cada um dos livros em busca de pistas do tesouro que logo viríamos a descobrir. Foi então que notei um súbito e incômodo silêncio inundar a sala.

    Parada diante da porta, uma pequena e assustada criatura nos olhava, varrendo com desespero todos os cantos da classe à procura de um lugar onde pudesse ancorar.

    Logo, os primeiros risos pipocaram pela sala, contagiando cada um dos alunos. Nos olhos espantados e cinzentos da menina, via-se o anúncio de uma violenta tempestade.

    Sem saber direito como socorrer a jovem náufraga,estendi meu braço e a conduzi até o meu lugar.

    Dividi minha carteira com Iara durante todo o primeiro dia de aula. A esta altura, a classe já tornara-se uma confusão insuportável de risos e piadinhas sobre a nossa amizade. Iara esteve ao meu lado o ano inteiro. Estudamos juntos para as provas, brincamos na rua e trocamos confidências nos intervalos das aulas. E foi na correnteza profunda e perigosa de seus olhos que vi surgir e naufragar o meu primeiro amor.