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  • Quarta-feira, 19 de janeiro de 2005


    Relato de uma traição


    Um cheiro colorido e alegre invadia a manhã. Os primeiros acordes de euforia o atraiam como os restos despejados pelas casas. Era uma sexta-feira abafada e a garoa fina caía gentil sobre o seu corpo. Chico corria contra o vento, seguindo a melodia. O ar era adocicado como os sorrisos. A ladeira era íngreme, mas ele aprendera que a felicidade exigia um certo esforço. Um labirinto de pés e odores formava-se à medida que ele avançava. Garrafas e copos de plásticos forravam o chão. Era como se, de repente, não pudesse mais reconhecer aquele território. Chico sacudiu-se todo, tentando organizar as idéias. Agora, pequenos pedaços de papéis misturavam-se à tímida chuva, ofuscando-lhe a visão.

    Procurou algum conhecido. Tudo soava estranho. Na realidade travestida daquela manhã de carnaval, sentiu-se só e triste. Um princípio de angústia o envolvia, contrastando com o ritmo crescente da multidão.

    De súbito, um cheiro familiar lambeu-lhe o rosto peludo e dócil. Na sua carência canina, ele abanou a cauda como num aceno de boas vindas.

    Latindo de felicidade, correu o mais que pôde ao encontro de sua dona. A ânsia de receber o primeiro afago da manhã era tamanha que Chico mal tocava o chão. A sensação de proximidade do objeto máximo de seu desejo o fazia prosseguir, valente, mesmo quando uma forte fisgada na pata dianteira o fez ganir de dor. Mancando e sentindo o sangue empapar-lhe o pêlo, parou diante da dona, aguardando sua recompensa. A língua sedenta denunciava o esforço. Os olhos vivos e brilhantes, a satisfação.

    Com passos leves e ágeis, Gabriela dançava e gargalhada, conduzida pela hipnótica melodia. O cabelo todo preso no topo da cabeça deixava à mostra o rosto de belos traços, onde ainda era possível farejar algum vestígio de infância. Ao contrário de seu habitual silêncio e discrição, ela era toda alegria. E entre um acorde e outro, atirava-se nos braços de um jovem pirata.

    Sentindo-se ultrajado em sua fidelidade canina, Chico rodeou insitentemente o casal. Sem conseguir ser notado, latiu. Primeiro, um latido seco, sentido. Depois, mais firme e ofendido. Esforço inútil: Gabriela encontrara um novo dono. E mesmo sem coleira, seu olhar estava preso ao dele. Estava adestrada e dócil, e Chico teve a nítida certeza de que se ela tivesse uma cauda, certamente a agitaria, tão grande era a sua felicidade.

    Com a pata e o coração latejando, calou-se. Agora era um misto de raiva e dor que inundava todo o seu dia. E por mais que abanasse todo o corpo, ele não conseguia livrar-se daquele ódio. Rosnando de rancor e desespero, sentiu os dentes cravarem-se na carne amarga do inimigo. Mas o início de satisfação pela dignidade recobrada foi interrompido pelo forte pontapé que o atirou longe. Ganindo de vergonha e tristeza, permaneceu atirado ao chão. E como se fosse a velha bola esquecida embaixo de algum armário, viu a dona ajoelhar-se diante do ferimento de seu novo amor. Lançando-lhe o primeiro olhar daquela trágica manhã, Gabriela apontou-lhe o caminho de casa. E como quem chuta cachorro morto, proferiu a ordem severa, mortal, humilhante: passa!