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  • Quarta-feira, 26 de janeiro de 2005


    É com muita satisfação que publicaremos hoje, neste espaço, o conto "Bom
    Dia", enviado por Laila Gonçalves, jornalista e professora de Inglês de
    Caxias do Sul-RS.


    Bom dia
    por Laila Gonçalves


    “Faixa de pedestre é para pedestre”, disse o policial, descarregando a frase de um rosto imóvel, com olhos que pareciam não ter pálpebras. Nem a brisa da manhã conseguia arrepiar os cabelos do braço daquele sujeito, que na vertical guiava o apito à boca. Atendi à ironia do guarda, dei ré com má vontade e segui seus passos. Tentei identificar o nome do oficial, mas só pude notar que seu uniforme era pequeno demais para o tamanho da barriga.

    Sinal verde. Começo bem meu dia, com a sensação de que vinha mais lenha na seguradora.

    Lindovaldo Tavares. Sou eternamente agradecido aos meus pais que tiveram a maravilhosa idéia de juntar sílabas de seus dois nomes, formando um terceiro, de forma a promoverem a homenagem de suas vidas. E a vergonha da minha. Sempre achei que essa estratégia de nomear filhos fosse uma desculpa preguiçosa de tapear a falta de criatividade.

    Minha mãe Linda me teve aos 37 anos. Ao contrário do que parece, ela se casou nova. O primeiro marido, que o nome não me recordo no momento, não pôde lhe dar filhos. Sargento do exército, pouco amoroso. Era transferido com freqüência. Não chegaram a namorar muito tempo. Noivaram e se casaram em seguida. Sou filho do segundo casamento de minha mãe.

    O senhor Valdir fez minha mãe feliz. Ele não a permitiu trabalhar. Ele sim, proporcionou mais conforto para ela. Ficando em casa, Linda tornou-se cozinheira exímia. Engomava nossas camisas com afinco. Até tomou gosto por artesanato. Pintava panos de prato como ninguém, bordava enxovais de todas as noivas do bairro e gravava nomes em jogos de porcelana. Havia meses que Dona Linda tirava mais que meu pai. Ele, na verdade, não ganhava muito na revenda de carros usados. Não. Não por ser um vendedor medíocre. Ao contrário. Ele tinha talento para vendas: falava ininterruptamente, fazia a barba todos os dias e até passava base nas unhas. Era explorado abusivamente no serviço. Suas comissões, além de poucas, eram vez ou outra tomadas pelo patrão, por meio de taxações, impostos, meios subversivos, só para não dividir a bolada.

    Ótimo. Há poucas quadras do escritório, um acidente fecha a pista. Vou ser obrigado a dar a volta por aquele mocó, e do outro lado, pegar a marginal até a Eusébio??? Caramba! Vou levar no mínimo uma meia hora para bater meu cartão.

    “Alô?”

    “Tudo bem Lindovaldo. Deixe que eu aviso”.

    Desliga o telefone seca e friamente, sem “tchau”, “até logo”, “inté”. Dinorah chega às sete todos os dias. Às vezes tenho a impressão de que ela fica tentando me observar por detrás do painel que separa nossas mesas. O seu computador fica exatamente ao oposto do meu. Quando fecha os maiores contratos, fica gritando ao telefone. Fica passando o perfil de seus clientes por aqueles pop-mails na intranete. E, com certeza, ela pensa que pode mais que os outros.

    O ponteiro da gasolina está quase na reserva. Preciso lembrar de abastecer, depois do expediente.

    “Bom-dia, Souza?”
    “Um - rum!”. Porteiros normalmente são extrovertidos. Gostam de assuntar, perguntar e querem saber de tudo, sempre. Exceto o Souza.

    “Algo de errado?”

    “São quase 10. O senhor vai acabar sendo demitido desse jeito.”

    “Por que diz isso Souza?”

    “Porque é quase 10.”

    Algo me dizia que isso tinha o dedo ou a língua da Dinorah.

    Putz. Estava marcada uma reunião para as oito, com todos os representantes de vendas e a gerência da seguradora.

    Que coisa! Marcam uma reunião importante em plena segunda-feira? Eles não sabem que existem seres humanos normais (eu sou quase um – tirando o meu nome), que saem e se divertem com os amigos no domingo à noite? Que vão ao bar do Jorge para ver as menininhas da pensão da Dona Dirce, que fica quase esquina com o posto Dois Irmãos? Quem são eles para marcar uma reunião logo na primeira hora da manhã de uma segunda-feira? Não vêem que nem todo mundo consegue tomar metrô para vir ao trabalho (exceto nos dias de rodízio). E deixei de tomar transporte público, não por opção, mas porque cansei de ser assaltado na baldeação. As faixas amarelas de segurança pegam trouxa. Já quase me empurraram sobre os trilhos, sem contar as coronhadas que tomo ao entrar no vagão. O empurra-empurra da estação da Sé já me quebrou o polegar esquerdo, e por quase um mês, só pude tomar pingado naquelas canecas Jô Soares. Há de convir que reuniões às 10 da manhã já soariam mais apropriadas...

    “Como foi a reunião Dinorah?”

    “”Bom-dia” sempre faz bem no início de qualquer diálogo, não acha?”

    “”Bom-dia” por quê? “Bom-dia para quem?” Para o guarda que me deu uma “comida-de-rabo”, por eu ter parado sobre a faixa do pedestre? Ele não me deu “Bom-dia”? Devo dar “Bom-dia” para os motoristas de ônibus da Viação Gatusa? E os clandestinos e as lotações que fecham a gente neste trânsito insano, desta cidade fétida? Devo distribuir “Bom-dia” para todos? Para o Amarelinho que me multou sábado passado na saída do Parque Antártica? Nem o porteiro me diz “Bom-dia”. “Bom-dia” para você, por quê?”

    “O gerente de vendas me demitiu. Parabéns. Você conseguiu Lindovaldo, com esse seu nome de gente humilde, simples, e com suas piadas de rodas de boteco, sempre puxando conversa com o Souza... fisgando os clientes certos, que pagam em dia...”

    “Mas são sempre contratos pequenos, eu, eu, eu não sab...”

    “Sim. Lindovaldo, você nunca me enganou com essa sua jogada de quem está sempre em cima do muro. Você, com essa panca de quem não cheira e nem fede. Você pensa que eu nunca notei?”

    “Do que está falando, Dinorah?”

    “De que você fica me observando por detrás do painel e está sempre de bituca nas minhas negociações com os meus clientes. Pensa que não percebo quando estou ao telefone? Toma Lindovaldo. Essa mesa é toda sua. Esse computador é todo seu. Meus mailings, malas diretas, listas de endereços eletrônicos. Engole isso tudo Lindovaldo. Agora você, de fato, vai poder não só se achar o melhor, mas vai poder dizer para todo mundo que é a coqueluche da Seguradora. Tenha um bom dia Lindovaldo Tavares!”




    Quarta-feira, 19 de janeiro de 2005


    Relato de uma traição


    Um cheiro colorido e alegre invadia a manhã. Os primeiros acordes de euforia o atraiam como os restos despejados pelas casas. Era uma sexta-feira abafada e a garoa fina caía gentil sobre o seu corpo. Chico corria contra o vento, seguindo a melodia. O ar era adocicado como os sorrisos. A ladeira era íngreme, mas ele aprendera que a felicidade exigia um certo esforço. Um labirinto de pés e odores formava-se à medida que ele avançava. Garrafas e copos de plásticos forravam o chão. Era como se, de repente, não pudesse mais reconhecer aquele território. Chico sacudiu-se todo, tentando organizar as idéias. Agora, pequenos pedaços de papéis misturavam-se à tímida chuva, ofuscando-lhe a visão.

    Procurou algum conhecido. Tudo soava estranho. Na realidade travestida daquela manhã de carnaval, sentiu-se só e triste. Um princípio de angústia o envolvia, contrastando com o ritmo crescente da multidão.

    De súbito, um cheiro familiar lambeu-lhe o rosto peludo e dócil. Na sua carência canina, ele abanou a cauda como num aceno de boas vindas.

    Latindo de felicidade, correu o mais que pôde ao encontro de sua dona. A ânsia de receber o primeiro afago da manhã era tamanha que Chico mal tocava o chão. A sensação de proximidade do objeto máximo de seu desejo o fazia prosseguir, valente, mesmo quando uma forte fisgada na pata dianteira o fez ganir de dor. Mancando e sentindo o sangue empapar-lhe o pêlo, parou diante da dona, aguardando sua recompensa. A língua sedenta denunciava o esforço. Os olhos vivos e brilhantes, a satisfação.

    Com passos leves e ágeis, Gabriela dançava e gargalhada, conduzida pela hipnótica melodia. O cabelo todo preso no topo da cabeça deixava à mostra o rosto de belos traços, onde ainda era possível farejar algum vestígio de infância. Ao contrário de seu habitual silêncio e discrição, ela era toda alegria. E entre um acorde e outro, atirava-se nos braços de um jovem pirata.

    Sentindo-se ultrajado em sua fidelidade canina, Chico rodeou insitentemente o casal. Sem conseguir ser notado, latiu. Primeiro, um latido seco, sentido. Depois, mais firme e ofendido. Esforço inútil: Gabriela encontrara um novo dono. E mesmo sem coleira, seu olhar estava preso ao dele. Estava adestrada e dócil, e Chico teve a nítida certeza de que se ela tivesse uma cauda, certamente a agitaria, tão grande era a sua felicidade.

    Com a pata e o coração latejando, calou-se. Agora era um misto de raiva e dor que inundava todo o seu dia. E por mais que abanasse todo o corpo, ele não conseguia livrar-se daquele ódio. Rosnando de rancor e desespero, sentiu os dentes cravarem-se na carne amarga do inimigo. Mas o início de satisfação pela dignidade recobrada foi interrompido pelo forte pontapé que o atirou longe. Ganindo de vergonha e tristeza, permaneceu atirado ao chão. E como se fosse a velha bola esquecida embaixo de algum armário, viu a dona ajoelhar-se diante do ferimento de seu novo amor. Lançando-lhe o primeiro olhar daquela trágica manhã, Gabriela apontou-lhe o caminho de casa. E como quem chuta cachorro morto, proferiu a ordem severa, mortal, humilhante: passa!




    Quarta-feira, 12 de janeiro de 2005


    Sinal fechado


    Vermelho. Amarelo. Verde. A vida segue no ritmo intenso do tráfego. No ziguezague dos motoqueiros. Na histeria das buzinas. Na fumaça preta dos ônibus. Na malandragem dos taxistas.

    Há três anos Gilda trabalha nas ruas. Papel e caneta na mão anotando placas. Apito na boca mandando parar ou seguir. Coreografia de braços nervosos no caótico balé do asfalto. A garoa fria, o vento cortante. 13 graus. Qualidade do ar: imprópria.

    E o Motoboy estendido no chão: sete pontos na carteira. Correria. Confusão de sirenes e macas. Olhares curiosos pelas janelas do ônibus. Mais um número para as estatísticas.

    No espelho do carro, a garota retoca o batom. Um homem confere a agenda e o relógio. O engolidor de fogo e a equilibrista dão um ar circense ao espetáculo das ruas. Balas nos retrovisores. Vidros blindados. Crianças passeiam entre os automóveis. Pedestres apressados pedem passagem.

    Gilda confere o relógio: 18h00. Os ponteiros parecem acompanhar o lento caminhar do trânsito.

    Gisele chegou estranha em casa, ontem. Há tempos tem notado o afastamento gradativo da filha mais velha: mantenha distância. Gilda não vai mesmo com a cara daquele garoto com quem Gisele anda saindo. Acesso proibido.

    Bi biiiiiiiiiiiiii. 9 graus, 20h00, qualidade do ar: imprópria. Chegando em casa tem de preparar o jantar. Vai conversar com a filha ainda hoje. Dizer que ela precisa voltar para o colégio. Precisar ser alguém na vida.

    Freada brusca. Batida policial. Assalto ao ônibus. Infração gravíssima.

    Parece que encontraram um homem morto na calçada. O painel eletrônico avisa que esta foi a madrugada mais fria do ano. Gilda detesta o frio. O vento gelando os ossos. Tudo congestionado.

    E Mauro que não encontra nunca um emprego. Cada dia mais nervoso. Ele também não gosta daquele menino que Gisele está namorando. Também quer que ela volte a estudar.

    No outdoor, jovens belos e sorridentes, de jaleco branco, observam através do microscópio. Uma frase avisa que uma carreira de sucesso começa ali.

    BMWs, lotações, ônibus, bicicletas. A vida flui com dificuldade. Passagens interditadas. Pontos de alagamento. Estacionamento permitido apenas para veículos autorizados.

    No bilhete da geladeira, a caligrafia arredondada de Gisele anuncia a fuga. Pé na estrada. Contramão.