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  • Quarta-feira, 22 de dezembro de 2004


    A reciclagem da vida


    As primeiras gotas de suor brotavam na face pequenina e delicada de Laura. A tarde era quente. O cheiro forte e azedo invadia o ar. Sob seus pés, restos da cidade. As roupas velhas e pequenas deixavam à vista o corpo em construção. Sua estrutura frágil de ossos e pele era como um edifício prestes a desabar.

    Em busca da primeira refeição do dia, a menina de olhos sujos escolhia o menu. E ela, que também era um pedaço rejeitado de carne, vencia o asco, atravessando a montanha pútrida de lixo.

    A disputa era limpa. As cabeças mantinham-se baixas, como se vigorasse por ali uma espécie de código de ética. Dezenas de olhos famintos lambiam todo o terreno à procura de algum alimento.

    Com uma das mãos, Laura segurava o saco cheio de restos, servindo-se do melhor que a vida era capaz de lhe oferecer. Em seus 15 anos de existência baldia, aprendera que a vida era um desperdício. E como quem aceita uma esmola, conformava-se com sua sina.

    Foi quando avistou, ao longe, uma caixa linda e delicada com um laço vermelho. Com o coração aos pulos e um súbito medo de que a vida lhe arrancasse também aquela alegria, correu em busca de seu presente. Segurando com firmeza o pacote de motivos natalinos, farejou-o cuidadosamente. Um aroma adocicado a envolvia e era como se sua realidade não estivesse mais em deterioração.

    Quando voltou a si, deparou-se com um par de olhos opacos e surpresos fitando-a com curiosidade. Magro, encardido e sorridente, o menino passeava da caixa para Laura com uma insistência quase incômoda.

    Com a respiração ofegante e o coração em pânico, a menina sentia o suor descer em cascatas pelo rosto. Sem saber como aceitar mais aquele presente que a vida lhe trouxera na tarde ensolarada de dezembro, Laura odiou o garoto. Era como se diante de sua presença, a caixa colorida de fita vermelha perdesse o encanto. No entanto, a leveza doce do ar ainda os envolvia e Laura sentia-se cada vez mais faminta. Seus lábios agora ansiavam por tocar a pequena massa macia e doce que se oferecia.

    - Panetone – explicou o garoto
    - Como? - Perguntou a garota, confusa.
    - Posso provar?
    - Claro – respondeu apressada a menina, como se não pudesse conter o “sim” que saltava-lhe da boca.

    E como se por algum instante um novo sentimento fosse despejado sobre aqueles corpos assustados, os dois lábios se tocaram, saciando uma fome que sempre estivera presente, sem jamais ter sido percebida. Com a alma reciclada e o coração limpo, os jovens amantes não eram mais simples detritos: existiam.