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  • Quarta-feira, 15 de dezembro de 2004


    O presente adiado


    Os olhos repletos de alguma coisa que já era saudade, que era uma ânsia por desfazer as malas e retroceder alguns passos. Que era quase um pedido de desculpas estrangulado pelo nó na garganta. Um impulso que o empurrava na direção oposta. Os pés desobedecendo o coração. A cabeça baixa, como se um grande peso amarrado ao pescoço o fizesse olhar insistentemente para baixo.

    E um frio assaltando-lhe a espinha. O medo crescente paralisando-lhe a vontade. A ferida escancarada enchendo-se de pus.

    Encarou-a pela última vez. Talvez fosse melhor assim. Da janela do ônibus, acenou vagarosa e insistentemente. O vento chicoteando-lhe o rosto salgado onde o tempo talhava as primeiras marcas.

    A boca seca, calada. A alma muda. Tanta coisa que ficou para ser dita… E a felicidade que acumulara com sacrifício durante anos espremida na pequena mala.

    João sentia como se sua vida estivesse sendo empurrada violentamente para um abismo de perigos e incertezas. Longe da mulher, dos filhos, de sua terra.

    “Prometo voltar logo, Luísa” - “ Espera que eu volto, sim” - “ A gente ainda vai ser muito feliz, Luísa”.

    Enfim, a visão da rodoviária cinzenta e fria. O mosaico de rostos desconhecidos. O aroma meio azedo de corpos amanhecidos. A mistura grotesca de cores e tristezas. Tantas histórias interrompidas. Abraços de chegadas e despedidas. Tudo ao mesmo tempo melancólico e desconexo.

    E a velha pensão, a velha da pensão, a música antiga do rádio, a mulher do quarto ao lado, o choro ritmado da criança, a carta relida tantas e tantas vezes, a letra arredondada de Luísa, o retrato dos filhos num canto do quarto.

    As noites de farra e bebida, as cores dos faróis, as madrugadas de garoa fria, as luzes do Natal, os pacotes de fitas coloridas. Seu presente tão infeliz. Cortado por pontes e viadutos. Atravessado pelo asfalto sujo e esburacado. O presente que ele jamais desejara. Que não cabia debaixo de nenhuma árvore. Que não pertencia mais a nenhuma casa.

    João havia mudado bastante nos últimos 10 anos. Quem o reconheceria? O cotidiano e algumas companhias o tornaram um homem sério e duro. Vestia roupa nova e um ar de indiferença. Arrumara um emprego, faturara algum dinheiro e decidira voltar para casa. Finalmente ia buscar sua família.

    Parado na porta de seu quarto, encontrou Luísa envelhecida de tanto esperar. Na imagem partida do espelho, era uma mulher em cacos. Arranhada, frágil, embaçada. A pele era uma casca cinzenta e grossa. Os cabelos desciam-lhe pelo corpo como uma vegetação morta. O vestido envolvia seus ossos como um lençol que protege a mobília da poeira. E ela era como uma relíquia que apodrece aos poucos.

    Ela o olhou com uma paixão tão intensa que causou-lhe incômodo. Abrigou-o em um abraço sufocante e assustado, como se quisesse impedir que ele partisse novamente. Ele retribuiu o olhar e o abraço beijando-lhe cuidadosamente a testa e sorrindo com prudência. Os filhos estavam crescidos e distantes. O antigo amor havia se transformado em um respeito cordial.

    Naquela noite, todos jantaram juntos, mas falaram bem pouco. É que a vida às vezes era mesmo um pouco indigesta.