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  • Quarta-feira, 31 de agosto de 2005



    Independência


    Não importa se hoje o dia acordou cinzento. Estou azul. Quero sentir o vento em meu rosto como se pudesse ser livre.

    Hoje minha alma vai crescer um palmo e caminhar na ponta dos pés. Vou deixar minha boneca num canto. Hoje sou eu quem caminha e bate palmas. Cansei de brincar de roda.

    Aquela velha ciranda era triste e se acabou. Tomei o copo de veneno que estava em cima do piano e não morri. Deixei o meu esconderijo, mas ninguém vai me alcançar. Se cansar de pular só nessa perna eu mudo. Não tenho mais medo do escuro. Mas quero que você me dê a mão para que eu possa atravessar a rua. A viagem é longa e eu ainda não conheço bem os caminhos.

    Você me diz para não correr, mas eu tenho pressa. Do outro lado do muro tem um mistério. Agora sou eu quem conta as histórias para você adormecer.

    Hoje eu sou a menina contemplando o presente. Tragam-me mais doces. Quero enjoar de lamber os dedos. Quero tomar chuva no quintal. Ainda preciso do seu colo e de sua mão para puxar a coberta quando fizer frio.

    O tempo está mesmo mudando, mamãe. Meu casaco já está mala. Cuidado para não se resfriar. Hoje não vou voltar para o almoço. Enxugue o rosto, você também já é moça feita. Não prometo juízo, fortuna nem sucesso, mas tenho um beijo para te dar.




    Quarta-feira, 24 de agosto de 2004


    Promessas de esquecimento


    Porque esquecer era sempre difícil. E por mais que ela apagasse a luz, fechasse os olhos, se recusasse a dormir. Por mais que ela evitasse os girassóis, as poesias, os filmes de amor, a lembrança a abraçava com seus braços fortes e mornos.

    E ainda que a vida insistisse em presenteá-la com dias ensolarados e promessas de risos fáceis, a memória era sua visita mais constante, sentada na velha poltrona da sala.

    Agora lá estava ele, a fitá-la como uma estátua triste e solitária. Pálida e fria. O olhar duro de pedra. Uma peça grande demais, pesada demais, antiga demais para a casa.

    E Antônia, que contemplara durante quase um ano aquele presente, do lado de fora da vitrine, agora já não sabia mais se o queria.

    Os traços fortes, bem marcados, bonitos. As palavras divertidas, inteligentes e agradáveis. A lembrança de momentos frágeis, de uma felicidade quase proibida. De cortes profundos. De grossas escaras. Se ela esticasse as mãos, poderia agora tocar o mármore escorregadio. E no meio daquela fortaleza de pedra, sentiu-se novamente prisioneira.

    O girassol envolto pelas mãos trêmulas. O pedido de perdão suspenso na sala. O semblante imóvel, talhado na pedra. A rigidez paralisada do sorriso.

    Mas esquecer era sempre difícil. E ela era como os débeis insetos atraídos pela luz. Promessas mortais de calor. Ela girava, atônita, ao redor da lâmpada embora soubesse que apesar de belo, aquele era um espetáculo artificial. Num vôo cego, desesperado, instintivo, deixou pousar seus lábios sobre o mármore gelado. E como quem escreve seu nome em uma lápide, foi queimar-se na beleza passageira daquela luz. Até que os dedos implacáveis da realidade viessem devolve-la novamente à escuridão.




    Quarta-feira, 20 de abril de 2005

    Ismália

    Ismália de sonhos distantes. Ismália de olhos de mármore. Ismália das lágrimas secas. Ismália o retrato triste. Ismália correndo na rua. Ismália atrás da janela. Ismália a moça suja. Ismália a amante solitária. Ismália de risos e espamos. Ismália flutuando no tempo. Ismália de gritos horrendos. Ismália de babas transparentes. De alívios artificiais. De quartos homogêneos. De rosas murchas. De angústias incompreendidas. Ismália correndo nua pelos corredores. Ismália de fantasmas irreais. Ismália a chama semi-acesa. Ismália a orquestra muda. Ismália de espelhos distorcidos.

    Ismália a rainha e a santa. A prostituta e a assassina. A mãe e a bailarina. Ismália de línguas inexistentes. Ismália de labirintos infinitos. Ismália de inocências risonhas. Ismália de abismos profundos. Ismália sonhando acordada. Ismália engatinhando no pátio. Ismália, a noiva morta no banquete da família. Ismália de membros atrofiados. Ismália de paixões inventadas. Ismália a freira cética. Ismália a viúva virgem. Ismália de soluços inaudíveis. De dores cômicas. De sonhos histéricos. De vida estéril. Solo infértil. Árvore sem seiva. Garganta seca. Olhos vítreos. Santa profanada.




    Quarta-feira, 06 de abril de 2005


    Quase uma fábula

    Tudo parecia muito maior naquela amanhã. O mundo era mesmo grande, ou era ela que se encolhia diante do medo e das incertezas que o futuro parecia lhe reservar?

    A travessia era difícil e o sol escaldava seu corpo pequenino. Mas aquele era um dia de fuga, dia para seguir seu próprio caminho.

    Agora era ovelha desgarrada. Sem pai, nem mãe, nem família. Sem mestre, nem amigos, nem comandantes. Deserdara de sua vida pacata e conhecida. Queria ganhar o mundo, mesmo sem saber direito o que fazer com ele.

    Uma nova paisagem se abria diante dela. Paredes de cores variadas. Estradas de macios tapetes feitos especialmente para seus pés. Guloseimas de todos os tipos. Novos ruídos de todas as cigarras.

    Cães solitários e fatigados pela vida miserável de todos os dias. A cidade era um formigueiro de acontecimentos. Respirar era quase um desfio. Mas à medida que adentrava um pouco mais o território desconhecido e perigoso, ela sentia-se maior e mais forte. E com seus passos de formiga, ia desviando de rodas e sapatos apressados, inimigos adorados pela sua sede imensa de descoberta.

    O entusiasmo era tamanho que mal podia sentir o cansaço, a sede e a fome.

    Quando finalmente decidiu fazer uma pequena pausa para o descanso, avistou algo tão surpreendente que seus olhos mal podiam alcançar.

    Numa vitrine imensa e colorida, um oásis de tortas, doces e chocolates. Sem poder acreditar no que era exposto a poucos metros de seu minúsculo nariz, pôs-se a caminhar depressa. Passeando pelo vidro limpíssimo da vitrine, procurava um vão onde pudesse passar seu corpo esbelto.

    E como quem explora uma mina, dedicou-se inteiramente à tarefa, até que um gordo senhor se aproximou da loja e abriu vagarosamente a porta.

    Sem esperar mais nenhum segundo, ela pulou para o braço do homem e pôde enfim adentrar o paraíso. Com passos cuidadosos, foi atravessando aquele corpo rotundo, concentrada na doçura que a vida brevemente lhe reservaria.

    Sentia-se quase vitoriosa.Numa arriscada manobra, ganhou a extensão do balcão e viu-se diante da maior variedade de doces que sequer conseguira sonhar alguma vez em sua vida. Agora era seu coração de formiga que parecia crescer dentro do peito, em batidas descompassadas de contentamento.

    Num salto definitivo, leve e acrobático, mergulhou em uma fôrma de papel recheada de creme, como se passeasse pelas saias de uma jovem bailarina.

    Estava orgulhosa de sua proeza e agora só sonhava ganhar o caminho de volta para casa, para poder relatar às companheiras sua heróica façanha. Em seu delírio de felicidade, mal pôde perceber quando o gordo senhor apontou o dedo enorme em sua direção.

    Antes que pudesse provar uma só fatia do tão desejado doce, sentiu um bafo quente envolver-lhe o corpo. Voltando sua cabeça para o alto, avistou uma boca imensa e salivante aproximando-se cada vez mais. O corpo todo coberto de creme e todo o cansaço do dia prejudicavam sua habitual agilidade.

    No entanto, a garra e a vontade de sobreviver a mais este desafio deram o impulso que faltava para que ela se atirasse desajeitadamente para o chão.

    Sentindo dores horríveis e um zumbido estranho na cabeça, ouviu uma voz trovejante ecoar pela doceria:

    -Malditas formigas, vou acabar com todas vocês.

    Munido de uma vassoura e com o rosto avermelhado pela ira, o dono da doceria varria furiosamente o chão, na tentativa de esmagá-la.

    Reunindo o restante de suas forças e ainda mancando por causa da queda, a pequena formiga partiu em direção à porta, por onde uma mãe, acompanhada de uma criança, entrava.

    Parada do lado de fora da loja, ela contemplou por mais alguns instantes a vitrine pensando que o que a separava da felicidade era apenas uma fina parede de vidro.
    Do lado de dentro, o senhor gordo, a mãe e a criança lambiam os dedos lambuzados de doces.